Mulher submetida a 32 anos de escravidão em Mossoró estava na casa de um pastor evangélico


31/01/2022

Uma mulher que trabalhava há 32 anos como empregada doméstica foi resgatada da residência de um pastor em Mossoró (RN). Segundo auditores fiscais do trabalho, ela chegou ao local ainda adolescente, com 16 anos, e sofreu abuso e assédio sexual do empregador. Geraldo Braga da Cunha, da Assembleia de Deus, nega as acusações.

Uma denúncia anônima chegou ao Ministério do Trabalho e Previdência através da conta @trabalhoescravo no Instagram, mantida pelo Instituto Trabalho Digno. Uma equipe do grupo especial de fiscalização móvel, coordenada pela Inspeção do Trabalho em conjunto com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal e a Defensoria Pública da União, foi enviada para verificá-la na semana passada.

Constataram que Maria (nome é fictício para proteger a vítima) era responsável pelos serviços domésticos e recebia em troca moradia, comida, roupa e alguns presentes. Mas nunca teve salário ou conta bancária, nem tirava férias ou interrompia os afazeres nos finais de semana. A fiscalização considerou a ocorrência de trabalho forçado, condições degradantes e jornadas exaustivas.

“Famílias ‘pegam meninas para criar’, gerando uma relação de exploração. É uma prática comum na região, infelizmente”, explica a auditora fiscal do trabalho Gislene Stacholski, que atuou a investigação da denúncia.

O UOL procurou o pastor, apontado como empregador. Chamando a situação de “pseudo caso de escravidão doméstica e abuso sexual”, seus três advogados assinam nota negando com veemência as acusações. E afirmam que ele está à disposição da Justiça para esclarecimentos que provarão sua inocência.

Para a defesa, a fiscalização levou à imprensa “informações manipuladas que interessam apenas a quem acusa”, promovendo uma “ação midiática” em “data convenientemente próxima ao Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo” – que foi celebrado no dia 28 de janeiro.

‘Como se fosse uma filha’

A auditora Marina Cunha Sampaio, que coordenou a ação em Mossoró, afirma que o empregador, a empregadora e os quatro filhos discordaram da caracterização de trabalho análogo ao de escravo uma vez que, segundo eles, Maria era tratada ‘como se fosse uma filha’ desde que chegou à casa.

A família é de baixa renda e vive em uma casa humilde. A trabalhadora dividia os mesmos espaços com todos até que, na pandemia, o pastor e sua esposa se mudaram para a casa pastoral, na vizinha Açu, voltando, de tempos em tempos, à antiga residência.

“A despeito de uma filha também ajudar nas tarefas domésticas, a vítima prestava um serviço diário, cuidando da casa e ajudando na criação dos filhos do casal”, afirmou a coordenadora da operação. Maria desistiu de estudar antes de terminar o primeiro ciclo do ensino fundamental.

De acordo com a fiscalização, o casal nunca cogitou uma adoção formal da “filha”. O pastor chegou a avaliar, há alguns anos, que fosse pago um salário a ela, o que não aconteceu. Mas recolheram o INSS durante algum tempo. O que contribuiu para o reconhecimento de vínculo trabalhista.

Marina Sampaio diz que o pastor afirmou que teve um “relacionamento consensual” com a empregada e que partiu dele a iniciativa de procura-la. Mas em depoimento, Maria disse que tinha “nojo” do empregador e que fugia dele na casa. Abusos e assédios sexuais teriam durado dez anos.

“Ela não teria como consentir ou não com relações sexuais porque estava na situação vulnerável de alguém que é reduzido à condição análoga à de escravo. Consideramos que foram relações de abuso”, afirma a coordenadora da ação.

A auditora avalia que a família ficou sabendo que isso ocorria, mas manteve as aparências. “A empregadora ainda disse que perdoava a trabalhadora por conta da relação com o marido, ignorando a situação de exploração ao qual ela a submetia.”

Questionada sobre isso, a defesa do pastor rechaçou o que chama de “tentativa de impor condenações sociais antecipadas, baseadas em juízos de valor não submetidos ao crivo do contraditório”, e afirma que o assunto será tratado no “processo judicial”.

Também diz que “sob o argumento de sigilo utilizado pelos órgãos de fiscalização”, a defesa teve negados o acesso à integra dos autos. Reclama que “a equivocada versão apresentada, corresponde apenas à visão unilateral dos órgãos de fiscalização que, frustrados com sua tentativa de imposição de um acordo injusto, querem macular a imagem de nosso cliente”.

Até agora, não houve acordo para pagamento da trabalhadora

Os salários atrasados e verbas rescisórias foram calculados em cerca de R$ 88 mil – parte da dívida já prescreveu. Além disso, o Ministério Público do Trabalho pediu R$ 200 mil em danos morais individuais para Maria, valor condizente com a baixa renda da família.

“Mas não houve acordo”, afirmou a procuradora do Trabalho Cecília Amália Cunha Santos, que fez parte da operação. Por isso, o MPT deve entrar com uma ação civil pública solicitando o pagamento.

Enquanto isso, ela foi para a casa de uma irmã e deve receber três parcelas do seguro-desemprego que é concedido, desde 2003, aos resgatados do trabalho escravo. Também será encaminhada a um centro que trata de violência contra mulheres.

Para a procuradora, no caso da escravidão no trabalho doméstico, o processo de libertação não termina com o resgate, mas começa com ele. Segundo ela, faz-se necessário um acompanhamento para que as mulheres ressignifiquem o seu papel nos locais que as exploraram. “Muitas criam uma grande dependência emocional com as famílias”, afirma.

Em Natal, outra trabalhadora doméstica resgatada

Em outra parte da mesma operação, uma mulher foi resgatada na capital do estado, Natal. Nascida em 1969 e analfabeta, ela estava há cinco anos trabalhando como doméstica e cuidadora para sua empregadora, uma mulher idosa e alcoólatra com problemas de saúde mental.

Permanecia 24 horas à disposição dela, inclusive à noite, dormindo num colchão na cama ao lado da patroa. Descansava apenas a cada 15 dias, trabalhava nos feriados e tirou férias apenas uma vez. Recebia cerca de R$ 500 por mês.

De acordo com a fiscalização, ela entendia que o péssimo tratamento que recebia, o que incluía gritos e xingamentos, não era correto. Mas se sentia responsável pela saúde da empregadora.

O MPT explica que, neste caso, também não houve acordo para o pagamento de salários atrasados, verbas rescisórias e a indenização por dano moral individual. A trabalhadora voltou para a sua cidade no interior e o caso também vai para a Justiça.

Em ambos os casos, o Ministério Público Federal deve receber os relatórios para a abertura de ação criminal dos envolvidos.

Em 2021, 27 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo doméstico no Brasil

O Brasil encontrou 1.937 pessoas em situação de escravidão contemporânea em 2021, maior número desde os 2.808 trabalhadores de 2013, segundo o Ministério do Trabalho e Previdência. O serviço doméstico envolveu 27 vítimas – em 2020, haviam sido apenas três.

“Em razão da grande repercussão do resgate da trabalhadora doméstica Madalena Gordiano no final de 2020 em Patos de Minas, o número de denúncias aumentou, o que levou a Inspeção do Trabalho a realizar 49 ações fiscais com o objetivo de verificar possível situação de escravidão contemporânea em ambientes domésticos rurais e urbanos”, afirmou o auditor fiscal Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) das Secretaria de Inspeção do Trabalho.

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Mais de 57 mil trabalhadores foram resgatados desde 1995, em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordeis, entre outras atividades.

Por Leonardo Sakamoto e Piero Locatelli

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